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Identidade não é imunidade: Por uma representação com responsabilidade

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A urgência de colocar corpos diversos nos espaços de poder é inegociável. Historicamente excluídos das instâncias de decisão, sujeitos LGBTQIA+, negros, periféricos, mulheres, pessoas com deficiência e povos originários têm o direito de disputar lugares onde se decidem leis, orçamentos e rumos políticos. Mas é justamente por levarmos a representação a sério que precisamos problematizar um fenômeno delicado: a conversão da identidade em escudo moral, que impossibilita o questionamento de condutas e transforma a diversidade em performance vazia.

Quando a presença identitária se basta por si, sem compromisso com os interesses coletivos que deveriam acompanhá-la, algo se rompe. A representatividade se converte em decoração. Mais grave ainda: pode tornar-se um dispositivo de blindagem contra críticas legítimas, esvaziando a luta que pretende honrar. Não faltam situações em que pessoas alçadas a posições de poder com base em sua trajetória de exclusão passam a reproduzir práticas autoritárias, clientelistas ou mesmo discriminatórias. E quando confrontadas, invocam sua identidade como recurso para desqualificar qualquer questionamento: “não me critique, pois isso é preconceito”.

O risco é evidente: se toda crítica for tratada como ataque à identidade, não há mais espaço para o debate ético. O resultado é a erosão da autonomia dos movimentos sociais, que deixam de operar com critérios políticos e passam a ser reféns de lealdades identitárias. Com isso, cria-se um campo minado onde a solidariedade é confundida com conivência e o medo de ser visto como preconceituoso silencia quem deveria fiscalizar, denunciar, corrigir rotas.

Esse impasse é alimentado pela cultura da impunidade e pela ausência de mecanismos institucionais capazes de garantir que a representação seja também responsabilidade. A lógica da identificação individual precisa ser equilibrada por procedimentos coletivos: regras claras de ética, prestação de contas, ouvidorias ativas, instâncias de mediação e formação contínua. A identidade pode ser um ponto de partida, mas não pode ser o ponto final.

Confundir presença com projeto é um erro estratégico. O fato de uma pessoa negra, trans, mulher ou PCD ocupar um cargo não garante, por si só, que suas ações serão antirracistas, anticapacitistas, anti-LGBTfóbicas, feministas ou populares. O contrário também é verdadeiro: há sujeitos com trajetórias marcadas pela exclusão que, ao chegarem ao poder, optam por alianças conservadoras ou por práticas individualistas, contribuindo para o descrédito geral da política. Isso não quer dizer que a luta por representatividade perdeu sentido. Pelo contrário: é justamente por sua importância histórica que ela não pode ser banalizada. Identidade não é sinônimo de integridade. Reconhecimento simbólico não pode dispensar compromisso ético. E não há empoderamento real sem vinculação com um projeto coletivo de justiça social.

É preciso coragem para romper o silêncio cómodo que protege os nossos quando erram. Coragem para entender que proteger as pautas é tão importante quanto proteger indivíduos. Coragem para cobrar que nossos representantes estejam à altura do que dizem representar. A verdadeira representatividade não se assenta apenas na origem social de quem fala, mas na responsabilidade política com que se fala.

A crítica ao identitarismo sem compromisso coletivo é, acima de tudo, um gesto de zelo. Zelo pelos movimentos sociais, pelas causas históricas, pelas pessoas que confiam nas instituições como caminho de transformação. Questionar comportamentos desvinculados de ética não é traição, é cuidado. A política que se pretende libertadora não pode temer o conflito interno, porque é dele que se forjam as rupturas necessárias.

A identidade segue sendo uma bandeira essencial. Mas ela não pode se tornar um biombo que esconde a falta de compromisso com a transformação real. Nossos corpos importam. Mas não só por estarem lá. Importam quando são capazes de transformar a presença em caminho, a experiência em escuta, o reconhecimento em mudança coletiva.

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