Axé e Zazen: o gesto ancestral de Rōzen
- Carlos Santos
- 22 de jul.
- 3 min de leitura
A ordenação da primeira monja zen budista afro-indígena em linhagem japonesa é um marco de celebração e ruptura. Em pleno século XXI, uma mulher negra e Kariri Xocó rompeu 700 anos de silêncios e exclusões.

Rōzen nasceu Roselí Eliguara Ynaê Araújo, em Salvador, em meio ao sincretismo vibrante da capital baiana. Cresceu entre o axé dos terreiros e o cotidiano dos bairros populares de Castelo Branco e Liberdade. A mistura de ancestralidades atravessa sua trajetória como gesto político. Ser afro-indígena em um país que insiste em negar a existência dos seus povos originários e a centralidade da população negra é, por si, um ato de coragem. Mas tornar-se monja zen budista em uma linhagem japonesa que, até então, jamais havia reconhecido corpos como o dela é também um chamado à reinvenção do sagrado.
Em 2025, no Templo Shinōzan Takuonji, no Paraguai, em meio a uma comunidade japonesa e guarani que preserva tradições ancestrais, Rōzen foi ordenada após três meses de imersão. Ali, o sushi se encontrou com o acarajé, e a tradição budista japonesa se abriu ao dendê da Bahia. Uma cerimônia que reuniu sua família, a comunidade local e as espiritualidades que atravessam sua existência. Sua presença naquele templo, com sorriso firme e ancestralidade à flor da pele, foi uma rachadura luminosa em uma história marcada pela homogeneidade racial e cultural.
Não se trata apenas de uma conquista individual. Rōzen sabe que sua ordenação também é um gesto de reparo. “Sai da realização individual para um compromisso coletivo”, disse. Ao romper os portais da linhagem Soto Zen, ela anuncia a urgência de uma espiritualidade mais enegrecida, decolonial e inclusiva. Seu corpo ali é um corpo que reza, sim, mas que também denuncia. Que medita, mas que também resiste.
Durante sua formação em História na Universidade Estadual de Feira de Santana, foi uma professora que introduziu o budismo como tema de pesquisa. A partir dali, ela percorreu linhagens, viveu experiências e fez do zazen uma forma de viver. Sua relação com o templo no Paraguai não foi apenas escolha espiritual, mas também política: uma comunidade descendente de imigrantes japoneses, acolhendo uma mulher afro-indígena brasileira para trilhar um caminho milenar de sabedoria.
É preciso reconhecer que levaram mais de sete séculos para que uma monja com suas características fosse ordenada nessa linhagem. Esse dado, ainda que celebrável pelo ineditismo, também é um espelho incômodo. Quantas outras Rōzen, com histórias e corpos semelhantes, ficaram à margem dessa tradição ao longo dos séculos? Quantas se viram fora dos limites da tradição porque seus corpos não eram considerados legítimos? A religião, em suas diversas formas, também precisa se olhar com honestidade e rever seus pactos de exclusão.
Mas Rōzen não caminha só. Ao se tornar a primeira, ela abre a porteira para muitas. “Quero abrir caminho para outras pessoas que se parecem comigo”, declarou. Sua prática atual no Templo Takuonji inclui meditação, atendimento de acupuntura para a comunidade e atividades com crianças, conforme relatado na reportagem. Um monastério que, em sua vivência cotidiana, se aproxima das lógicas de um quilombo e de uma aldeia: comunitário, plural e enraizado em afetos coletivos.
É simbólico que o encontro entre o sagrado oriental e o sagrado afro-brasileiro tenha acontecido em solo paraguaio, entre guaranis e exilados da Segunda Guerra. A história de Rōzen nos ensina que espiritualidade e ancestralidade não obedecem fronteiras nacionais. Ela mesma é travessia: entre a Bahia e o Japão, entre o axé e o zazen, entre o passado e o que ainda virá.
Que sua jornada seja também um convite à descolonização do sagrado, reconhecendo sua conquista como gesto político e espiritual de abertura para outras possibilidades de pertencimento. Que seus passos ecoem entre monges, yalorixás, pajés e curandeiras. Que sua existência lembre ao mundo que meditar também é um gesto de re-existência.
Referências
Baiana se torna primeira monja zen budista afro indígena em linhagem japonesa de mais de 700 anos; entenda G1 Bahia https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2025/07/12/baiana-se-torna-primeira-monja-zen-budista-afro-indigena-em-linhagem-japonesa.ghtml
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