O corte que denuncia: os EUA, o Sul Global e a necropolítica conservadora
- Carlos Santos
- 23 de jul.
- 4 min de leitura
Sob a promessa de sanidade fiscal, Trump impõe cortes que escancaram o desprezo pelas vidas periféricas e revelam o projeto global de morte da extrema direita.

Ao aprovar o pacote de cortes proposto por Donald Trump, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos não apenas mutila US$ 9 bilhões do orçamento federal, mas crava no mundo um recado histórico de desprezo pelas vidas que dependem da cooperação internacional.
Sob a capa da "sanidade fiscal", o que se celebra é a reafirmação brutal de uma política externa racista, colonialista e estrategicamente letal para o Sul Global, especialmente para países africanos e latino-americanos que historicamente dependem de programas de cooperação internacional para conter epidemias, fortalecer sistemas de saúde e garantir direitos sociais básicos.
O corte na ajuda externa e no financiamento da mídia pública não é uma medida técnica: é um gesto ideológico. Ao ser aprovado por 216 votos contra 213, o pacote não apenas retira recursos de programas essenciais como os da USAID, mas reafirma o projeto político da extrema direita estadunidense: um isolacionismo agressivo por fora e um reacionarismo moral por dentro. Não à toa, Trump comemorou o resultado como uma vitória que os republicanos tentam há 40 anos. O sonho conservador se materializa como pesadelo humanitário para os povos periféricos do mundo.
Entre os programas ameaçados está o PEPFAR, responsável por avanços decisivos no combate ao HIV/AIDS em países africanos e latino-americanos. Embora o corte específico de US$ 400 milhões tenha sido retirado na versão final do pacote, o simbolismo da ameaça é eloquente.
O PEPFAR, sigla em inglês para Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da AIDS, é uma das principais iniciativas globais no combate ao HIV/AIDS, responsável por salvar milhões de vidas desde sua criação em 2003. Ao atacar o financiamento de políticas de prevenção e tratamento, os conservadores expõem uma indiferença cruel à possibilidade de uma nova onda da epidemia, agravada pela precarização da saúde pública global.
A USAID, frequentemente retratada pela retórica de direita como uma agência de desperdício, tem sido um dos instrumentos centrais dos EUA na chamada diplomacia humanitária. Com todos os limites e contradições que envolvem a ajuda internacional vinda de uma potência imperial, é inegável que iniciativas como o fortalecimento de clínicas comunitárias no Quênia, o apoio a programas de alimentação escolar em El Salvador ou o financiamento de ações de resiliência climática no Haiti inúmeras comunidades ao redor do mundo se beneficiaram de programas de educação, saúde, segurança alimentar e enfrentamento a crises humanitárias financiados pela agência. A destruição sistemática dessa estrutura, motivada por uma narrativa de "gastos desnecessários", é mais um capítulo do projeto necropolítico que rege a extrema direita global.
É preciso nomear o que está em jogo: vidas negras, pobres, periféricas e invisibilizadas. O corte de Trump não afeta o privilégio branco estadunidense, não compromete os lucros do complexo industrial-militar, não desorganiza o aparato de vigilância e controle de fronteiras. Enquanto programas de saúde e educação são desmantelados, os contratos bilionários com empresas de defesa como a Lockheed Martin seguem intocados, e a máquina de deportações e patrulhamento de fronteiras recebe cada vez mais investimentos. Ele impacta diretamente populações que dependem de acesso a medicamentos antirretrovirais, de programas de prevenção à violência de gênero, de redes de atenção primária à saúde em regiões devastadas pela guerra ou pela fome. E tudo isso é tratado como custo supérfluo, como se a dignidade humana tivesse valor de mercado.
Ao mesmo tempo, o corte ao financiamento da mídia pública também deve ser lido como parte de uma estratégia de controle ideológico. A PBS (Public Broadcasting Service), rede pública de televisão dos Estados Unidos com foco em educação, cultura e jornalismo de interesse público, e outras redes de conteúdo educativo e comunitário vêm sendo acusadas pela direita de "parcialidade contra visões conservadoras". Ao sufocar esses espaços, o trumpismo tenta impor um silêncio seletivo, onde apenas a opinião hegemônica tem vez. Em 2024, por exemplo, houve tentativas legislativas de cortar verbas da PBS sob a justificativa de que seus conteúdos promoviam "valores progressistas", culminando em campanhas de difamação por figuras conservadoras que buscavam deslegitimar o jornalismo público e educativo. O autoritarismo do capital, entendido aqui como o poder exercido pelas elites econômicas para moldar as políticas públicas segundo seus interesses, se traduz na censura pelo desmonte: ao desfinanciar meios e programas que dão voz às maiorias, impõe-se um silenciamento que favorece a manutenção das desigualdades estruturais.
Não se trata apenas de uma disputa entre partidos ou de uma diferença sobre prioridades fiscais. Trata-se de um embate civilizatório. O desmonte da cooperação internacional, da comunicação pública e das políticas de saúde global é a manifestação concreta de um projeto de morte. A vitória republicana na Câmara não é apenas um recuo nos compromissos internacionais dos EUA. É um alerta à comunidade global sobre a escalada do conservadorismo e da barbárie travestida de austeridade.
Referências:
Câmara dos EUA aprova pacote de Trump com corte de US$ 9 bilhões que afeta ajuda externa - G1, com Reuters https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/07/18/camara-eua-pacote-trump-cortes-ajuda-externa.ghtml
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