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Entre o comprimido único e o pacto com a saúde pública

  • Foto do escritor: ARCO
    ARCO
  • há 7 dias
  • 4 min de leitura

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No Brasil, um novo compasso se desenha no tratamento do HIV. O SUS, com sua magnitude e acenos, começa a oferecer terapias com dose única diária para parcela significativa das pessoas vivendo com HIV (PVHA), ao mesmo tempo em que amplia o acesso a esquemas para casos de multirresistência. Essa mudança não é mero ajuste farmacológico: é política com implicações simbólicas, institucionais e existenciais, e merece análise cuidadosa, celebratória e crítica.

Desde o início de 2025, reportagens confirmam que pacientes com mais de 35 anos poderão migrar para o regime de dose única combinada de lamivudina + dolutegravir (300 mg + 50 mg) no SUS. Também foi anunciado nas esferas oficiais que o medicamento fostensavir foi incorporado para uso em pessoas com HIV multirresistente. Em paralelo, ofertas recentes do governo ampliaram a lista de retrovirais disponíveis no SUS, com as incorporações de darunavir 800 mg, dolutegravir 5 mg e raltegravir 100 mg.

Esses avanços repercutem em três dimensões que precisam ser escrutinadas: o significado para a qualidade de vida das PVHA, os desafios institucionais para uma política pública sustentável e o confronto entre memória e estigma.

A migração para dose única diária carrega promessa de adesão facilitada. Menos comprimidos, menor risco de esquecimento ou complicações de esquema terapêutico, melhora na experiência terapêutica. É um ganho não apenas médico, mas existencial. Gerir tratamento não pode significar viver ancorado na cronofagia do cotidiano. A opção por terapias mais simples é, de certa forma, um reconhecimento de que o tratamento de HIV não pode significar apenas “sobreviver”, mas viver com dignidade.

Por outro lado, quem vive com HIV nos últimos decênios conhece bem o lado menos visível dessas facilidades: restrições de critério (quem pode migrar? quem está fora desse perfil?), engrenagens logísticas para mudança de esquema, monitoramentos clínicos de segurança. Se uma terapia mais simples vira política para quem “qualifica”, corre-se o risco de aprofundar desigualdades. Quem já está fora do centro do “perfil ideal” — idoses, pessoas com comorbidades, habitantes de zonas rurais, periferias, áreas com atenção básica fragilizada — pode ficar à margem dessa facilidade.

A incorporação de terapias para multirresistência, como o fostensavir, também sublinha uma ambiguidade institucional. Por um lado, há reconhecimento de casos historicamente negligenciados. Por outro, a burocratização e a centralização da autorização técnica podem limitar o acesso real para as populações mais vulnerabilizadas. Esse movimento nos convida a questionar: uma política pública de saúde é justa apenas se chegar a todos, inclusive aos mais complexos, aos com trajetórias clínicas menos previsíveis.

Para compreender esses avanços, é preciso revisitar a história. Na década de 1980, com o surgimento da epidemia no Brasil em meio à redemocratização, o Estado conviveu com lacunas, preconceito social e silêncios institucionais. Foram os movimentos sociais, as organizações comunitárias e os ativismos — como os GAPAS — que assumiram papel central de interlocução e denúncia. A institucionalização começou a ganhar força na década de 1990. Em 1996 foi sancionada a Lei 9.313, que determinou a distribuição gratuita e universal de antirretrovirais pelo SUS para as PVHA. Esse pacto legal foi uma marca histórica. Deslocou a narrativa da doença como fatalidade individual para uma abordagem de direitos.

Nos anos seguintes, o Brasil foi visto como um modelo global nesse enfrentamento. Uma combinação de ciência, diplomacia de preços e mobilização social permitiu ampliar o acesso aos coquetéis terapêuticos. Mas nos últimos anos, citar esse modelo passou a exigir nuance. As restrições orçamentárias, a pressão das patentes farmacêuticas, as crises econômicas e a instabilidade político-institucional têm limitado o ritmo das inovações terapêuticas no SUS.

O cerne dessa tensão é político. É preciso garantir que uma política pública de saúde permaneça aberta à incorporação científica, sem se tornar refém de gestos simbólicos ou de critérios de tecnicismo que excluem. A entrega de dose única só será significativa se for universal. Se for acompanhada de suporte nas regiões mais remotas. Se contemplar quem vive com múltiplas comorbidades ou enfrenta barreiras sociais de acesso. A adoção de regimes para multirresistência também deve ser pensada com estratégia descentralizada, evitando que fique aprisionada em centros urbanos ou de referência.

Mais ainda: é urgente conectar essas decisões institucionais com o mundo vivido das PVHA. O tratamento do HIV não pode ser apenas conjunto terapêutico. Precisa reconhecer os impactos emocionais, sociais, estigmas persistentes, violências sutis e explícitas que muitas vezes cercam a vida soropositiva. Mesmo que os comprimidos sejam menos, os muros simbólicos — discriminação, vergonha, invisibilidade — não se apagarão sozinhos.

Por isso, celebro esse momento. O SUS avança ao oferecer esquemas mais leves e opções para casos complexos. Mas insisto no desafio: que esse avanço não se restrinja aos corpos que “encaixam” no perfil clínico ideal. Que não deixe de fora os marginalizados ou os clínicos mais difíceis. Que não se torne política de migração privilegiada para quem já está em vantagem territorial ou de cuidado.

Que as histórias silenciosas de quem ficou fora dos esquemas mais cedo não sejam apagadas pela narrativa do “avanço puro”. Que o pacto com a saúde pública se reafirme: democrático, plural, complexo. Que não sacrifique vidas em nome de cenários-limite de tecnologia. O SUS que sonhamos não é apenas aquele que oferece o melhor comprimido. É aquele que escuta, acolhe, garante, repara e insiste na vida.


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