Você já deve ter percebido em alguns vídeos de eventos do governo federal, que a chamada linguagem neutra passou a ser utilizada com frequência pelos membros do atual governo. Não é raro ver o cerimonialista saudando a "todas, todos e todes". De acordo com ativistas dos direitos de pessoas LGBTQIAP+, o uso de pronome neutro seria inclusivo com pessoas que não se identificam com a binariedade masculino/feminino.
Entretanto, nem sempre foi assim, o próprio Governo Federal, sob a égide do governo do ex-presidente da República chegou a proibir, por meio da Portaria 604/2021, publicada no Diário Oficial da União de 28 de abril de 2021, o uso da linguagem neutra em eventos que tivessem sido financiados com verbas decorrentes da Lei Rouanet.
Graças aos céus, o Ministério Público Federal impugnou a Portaria na Justiça, posto que a proibição de uso configuraria censura prévia e violação ao direito à liberdade de expressão, consagrado na Constituição Federal. Em decisão liminar, o Juiz Federal Herley da Luz Brasil entendeu que a censura ao tipo de linguagem que pode (ou não) ser empregada em obra artística deve ser evitada, sob pena de se impor uma determinada visão de mundo.
O processo mencionado acima, aberto pelo MPF, segue sem previsão de fim, contudo, a decisão liminar suspendeu a validade da Portaria impugnada até o final do processo.
Mas, não para por aí, diversos projetos de Lei foi propostos na Brasil, durante o antigo governo, e também no novo governo. Você viu em publicação aqui no Cores, que só em 2023 foram mais de 60 projetos de lei antitrans propostos no Brasil, dos quais pelo menos 06 são contra o uso da linguagem neutra.
Não obstante, diversos Estados e até munícipios, editaram leis proibindo uso de linguagem neutra e menção à orientação sexual e identidade de gênero nas escolas. O argumento é sempre o mesmo - "proteger"as crianças - proteger do quê não sabemos.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, já se decidiu sobre o tema, e ainda tem algumas discussões sobre a matéria em trâmite na Corte. Em 10 de fevereiro de 2023, o STF concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7019, e declarou inconstitucional lei do Estado de Rondônia, que proibia o uso de linguagem neutra nas escolas do públicas e particulares do Estado, inclusive sua menção em materiais didáticos. O Supremo entendeu que a lei feriu a competência da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação.
Apesar disso, diversas outras Leis estaduais e municipais ainda estão em vigor no Brasil, com proibição semelhante. Além de Rondônia, o Paraná tem uma lei igual; Santa Catarina tem um decreto que proíbe o uso do pronome neutro. No mesmo sentido, Porto Alegre e Manaus tem leis municipais. Outros 8 estados e 6 capitais tem projetos de lei para proibir a linguagem neutra.
De outro giro, o STF já decidiu em diversos processos que "enterrar" o que se convenciou chamar de ideologia de gênero, falácia criada pelos defensores da Escola Sem Partido para proibir que debates sobre orientação sexual e identidade gênero sejam realizados nas Escolas. É um medo terrível da chamada ditadura "gayzista". Quem não lembra das fakes news sobre "kit gay" e "mamadeira de piroca" que assolou as eleições de 2018 e culminou na eleição do inominável.
Pois é, a ideologia do Escola Sem Partido criou raízes e diversas leis estaduais e municipais com essa proibição (ideologia de gênero) foram aprovadas, muitas delas em Pernambuco. Porém, o STF já declarou várias inconstitucionais.
O fundamento das decisões tem sido basicamente a invasão da competência privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 22, XXIV, CRFB/88), porém, em diversas ocasiões, os ministros têm dito que as crianças e adolescentes têm direito à educação livre de preconceitos.
Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 465, por exemplo, o Ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado pelos pares, entendeu que lei do município de Palmas-TO, desrespeitou o direito à educação com o alcance pleno e emancipatório que lhe confere a Constituição, que o Estado tem o dever de assegurar um ensino plural, que prepare os indivíduos para a vida em sociedade, e que houve clara violação à liberdade de ensinar e de aprender (CF/88, arts. 205, art. 206, II, III, V, e art. 214).
Ainda na ação mencionada, decidiu que houve comprometimento do papel transformador da educação, que deveria ser libertadora. Além disso, foi utilizado o aparato estatal para promoção de uma única visão de mundo, bem como para manter grupos minoritários em condição de invisibilidade e inferioridade.
Considero, pois, de extrema importância a discussão que se dá em torno do uso da linguagem neutra em eventos oficiais, em escolas e em outros ambientes, mas que seja uma discussão livre de hipocrisia, de conservadorismo, etc. É preciso discutir com seriedade, a fim de evitar violação aos direitos à igualdade, à cidadania, à dignidade da pessoa humana, à educação, saúde e outras garantias fundamentais.
Para além disso, reputo de extrema necessário proteger crianças e adolescentes; respeitar seus direitos, dentre os quais o direito à educação. Chamo à lembrança que as crianças e adolescentes são pessoas em desenvolvimento, que precisam ser colocadas à salvo de qualquer tipo de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, o que envolve o direito à não ter negado o acesso à informações sobre orientação sexual e identidade de gênero.
É importante, portanto, a educação sobre diversidade sexual para crianças, adolescentes e jovens, que são indivíduos especialmente vulneráveis que podem desenvolver identidades de gênero e orientação sexual divergentes do padrão culturalmente naturalizado, conforme já decidiu o STF.
Destarte, o uso da "linguagem neutra" ainda vai passar por uma estrada longa e difícil até ser aceita e utilizada amplamente, porém, em alguma medida, tem sido aceita e garantida por diversas decisões judiciais, a despeito de todas as tentativas parlamentares de barrá-la, por isso bato sempre na mesma tecla - elejam pessoas que entendam suas peculiaridades, que defenda os seus direitos, seja agente da mudança que espera, do contrário, passará o resto da vida dependendo de decisões judiciais voláteis.
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