O Brasil é um país de dimensões continentais, cuja grande extensão territorial permite a existência de valores culturais distintos dentro da sociedade. Somos, portanto, um país multicultural - DIVERSO.
A sede do STF, em Brasília. Foto: Divulgação/STF
Nossa fama de povo feliz e tolerante corre o mundo, mas pesquisas realizadas por organizações internacionais indicam o contrário. À exemplo, a pesquisa As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil, divulgada em 14/03/2023 pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mostra que pelo menos 32 milhões de crianças e adolescentes vivem na pobreza, tendo diversos direitos fundamentais (saúde, educação, moradia, alimentação e etc.) violados diariamente por aqueles que deveriam protegê-los.
Não bastasse isso, há 14 anos o Brasil lidera o ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo. De acordo com o Dossiê Assassinatos e Violências contra travestis e transexuais brasileiras, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), apenas em 2022, 131 pessoas trans perderam suas vidas no Brasil.
Infelizmente, Pernambuco foi o estado do país com o maior número de casos de homicídios, sendo um total de ao menos 13 mortes. Falo "ao menos", porque dada a omissão do Estado brasileiro em punir e reprimir esses crimes, os casos são subnotificados. Vivemos, portanto, um apagão, um estado de coisas.
A violência a qual me refiro, em que pese atinja diretamente uma pessoa - Dandara, Roberta, Keron - é dirigida à um grupo, coletividade. À comunidade LGBTQIA+. É uma tentativa de silenciar, de apagar a história, as lutas, os direitos que já são insuficientes.
Direitos precários
Por falar em direitos, é necessário rememorar que os direitos da comunidade LGBTQIA+, notadamente os que dizem respeito à diversidade sexual e de gênero, são deveras precários, isto é, insuficientes, instáveis e incertos.
Ora, a Constituição de 1988, discutida com a participação popular e promulgada após longos 21 anos de ditadura militar, instituiu em seu texto um arcabouço jurídico de proteção das pessoas e de garantia de direitos básicos fundamentais.
Já no artigo 1º, a Constituição dispõe ser fundamento, ou seja, alicerce, da república brasileira, a cidadania, e a dignidade da pessoa humana, sendo certo, portanto, que o ser humano aqui é tratado como um fim em si mesmo, o destino da atuação do Estado e de suas instituições, e não um meio para alcance de fins diversos. Somos, assim, o centro da atuação estatal.
Na sequência, ao anunciar os objetivos fundamentais da república, a Constituição estabelece ser objetivo primordial do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Entretanto, não é o que se vê na realidade. Pessoas são tratadas como seres humanos de 2º categoria, como se suas vidas e histórias tivessem menos importância. É assim com a população negra, carcerária e LGBT.
Ademais, apesar de a Constituição já prever esse conjunto de direitos, outros podem e devem ser estabelecidos em seu texto, através de Emenda, e na legislação infraconstitucional, por meio do processo legislativo geral. A própria Lei da República estabelece no art.5º, §2º, que os direitos e garantias expressos em seu texto não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, ou seja, o rol de direitos pode e DEVE ser aumentado.
Ocorre, no entanto, que quando o assunto é proteger e garantir a existência de minorias, principalmente da comunidade LGBTQIA+, o Brasil - leia-se o Poder Legislativo federal - está aquém do dever estabelecido pela Constituição.
Dou exemplo!
Desde os anos 2000, tramitam no Congresso Nacional projetos de Lei que pretendem punir atos discriminatórios em razão da orientação sexual da vítima. O Projeto de Lei 5.003/2001 tramita no Senado Federal desde o final de 2006, após ser aprovado pela Câmara dos Deputados. Na Câmara Alta recebeu o número PLC 122/2006 e foi arquivado em 26 de dezembro de 2014. O mencionado projeto de lei alteraria a Lei de Racismo (Lei 7.716/89) para punir a homofobia como crime de racismo.
O PLC 122/2006 antes de ser arquivado há quase 10 anos, foi anexado ao Projeto de Lei do Senado 236/2012, que pretendia reformar o Código Penal. Detalhe, um projeto de Código Penal (Civil, Processo Civil, Processo Penal, etc) demora anos para ser aprovado e sancionado, a exemplo disso temos o Código Civil de 2002, que começou a ser discutido na década de 70.
Tratei aqui sobre a proteção penal (punição da homotransfobia), mas se seguirmos para outras áreas do direito veremos que não é diferente. No que toca ao direito civil e de família, pessoas LGBT apenas puderam viver livremente seus amores a partir de 2011, quando tiveram suas uniões estáveis e casamentos, reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
Em outras palavras, o Código Civil de 2002, promulgado após a Constituição que estabeleceu a igualdade como regra, limitou a celebração de casamentos e uniões estáveis entre homens e mulheres.
Precisou uma Corte ser chamada a decidir sobre o tema. E assim fez o STF (STJ), reconhecendo o direito ao casamento, à adoção, a retificação de nome e gênero, à criminalização da homofobia, a doação de sangue, etc. Porém, tudo isso é precário, porque são decisões judiciais, que podem futuramente ser revistas.
Nesse sentido, apesar de a Constituição proibir o retrocesso (retirada de direitos), não é bom contar com a sorte. Nunca se sabe quando um outro "Messias" assumirá o Poder e indicará mais um "terrivelmente evangélico" ao Supremo Tribunal Federal. Isso é perigosíssimo. É um risco que corremos.
Revisão de decisões judiciais
Como falei, as decisões judiciais podem ser revistas, principalmente quando a composição dos tribunais muda. Vocês devem lembrar que em outra ocasião expliquei o que são órgãos colegiados, que são formados por mais de um juiz. Esses juízes, como qualquer outro profissional, se aposentam, e nesse caso cabe ao Presidente (ou Governador do Estado, no caso de tribunal estadual), indicar o substituto.
Com essas indicações, o entendimento dos tribunais pode ser revisto, à pedido de interessados, como aconteceu nos Estados Unidos da América.
Como já expliquei em um texto anterior, a Suprema Corte dos EUA revisitou a decisão de Roe v. Wade, e passou a entender, depois de 49 anos, que caberia a cada um dos 50 estados norte-americanos definir se a interrupção voluntária da gravidez é crime ou não, ou seja, se mulheres teriam direito de abortar.
Ainda, na decisão o Justice Clarence Thomas sugeriu rever(ter) também decisões como a que tornou legal o casamento homoafetivo em todos os estados americanos (lá cada estado pode definir regras de direito penal, civil, etc). Hoje a Suprema Corte americana conta com 06 juízes conservadores e 03 progressistas.
No Brasil, apesar das investidas de um dado presidente, a Suprema Corte conta com uma maioria progressista, mantendo, pelo menos momentaneamente, a validade dos direitos aqui mencionados, mas é preciso mais do que isso. Precisamos de leis que positivem essas decisões judiciais, que assegurem esses direitos, sob pena de vivermos eternamente nesse "e se?".
Retomando...
Veja, o Brasil, apesar de toda diversidade, é um país ainda intolerante à diferença, ao outro, àqueles que ousam fugir dos padrões, não caber nas caixas que insistem em nos colocar. Isso é perigoso, porque, a despeito de a Constituição determinar que todos são iguais, determinados grupos majoritários insistem em querer suprimir os direitos de minorias. É só lembrar (não esqueçam para não repetir) de Bolsonaro que disse que "ou as minorias se adequam ou simplesmente desaparecem".
Essa supressão acontece com a anuência e permissão do Estado brasileiro, que age de forma desidiosa, mantendo-se inerte no que toca a proteção de grupos minoritários, tal qual a comunidade LGBT, que espera desde 1988, por uma proteção nos moldes do art. 5º, XLII, da Constituição (racismo como crime inafiançável e imprescritível).
O direito da pessoa LGBTQIA+ ser e existir, protegida em sua integralidade é garantido pela Constituição, que diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e determina que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Esse foi o entendimento do STF ao decidir que o Congresso Nacional está em mora inconstitucional em proteger a comunidade LGBT, ou seja, está atrasado, sendo certo que esse "atraso" ofende a Constituição, isto é, é INCONSTITUCIONAL.
Cabe a nós, enquanto cidadãos e destinatários das normas protetivas determinadas pela Constituição, cobrar daqueles que chamamos de representantes, a elaboração dessas leis. Aliás, a comunidade LGBT precisa se aliar, lançar e eleger candidatos da própria causa, que sintam as dores do movimento. Chega de bater palma só para aliados.
É preciso exigir normas de proteção, garantidoras de direitos. Leis que protejam efetivamente a diversidade, o pluralismo, e incentivem a educação das pessoas, de forma inclusiva e libertadora, já que, como dizia Paulo Freire, a educação muda as pessoas e estas mudam o mundo.
É, portanto, momento de exigir respeito, de acabar com o preconceito, de colorir as instituições, de estar dentro delas. Até lá, é importante cobrar daqueles em que depositamos nosso voto, medidas efetivas para nossa proteção, a fim de que não sejamos mais um número nas estatísticas.
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